terça-feira, 5 de março de 2013

Do cu enquanto agente político - Ricardo Araújo Pereira

Há mais poesia no cu de Viegas do que no cu de Botto

A entrada fulgurante do cu na vida política portuguesa valoriza simultaneamente o cu e a vida política portuguesa. Francisco José Viegas, antigo secretário de Estado da Cultura, disse que, na eventualidade de ser abordado por um desses novos fiscais das facturas, lhe pediria "para ir tomar no cu". O cu entra na política por via da cultura, um canal de prestígio cujo acesso costuma estar barrado ao cu, e a política acolhe com agrado a sensualidade e a volúpia do cu, das quais está sempre muito necessitada.
António Botto, outro escritor que produziu pensamento (e não só: também produziu acção, e muita) sobre o cu, escreveu um poema célebre que começa com o verso Nunca te foram ao cu. Porém, o que em Botto é lamento nostálgico, em Viegas é esperança e projecto de futuro. Ambos os poetas idealizam um cu, mas Botto lastima que o proprietário do cu que contempla nunca nele tenha tomado, ao passo que Viegas oferece ao titular do cu que imagina um incentivo a que lá tome.
É curioso constatar que há mais poesia no cu de Viegas do que no cu de Botto. O cu em que Viegas manda tomar é um cu simbólico. Trata-se de um cu que é metonímia de outro cu. Viegas não ignora que, acima do cu do fiscal das facturas há outros cus, bastante mais poderosos - e, acima desses, outros cus ainda. Essa hierarquia de cus culmina num cu-mor, responsável último pela ideia da fiscalização de facturas. É esse o cu a que Viegas deseja aplicar a receita que prescreveu. O antigo secretário de Estado está, portanto, a mandar tomar no cu por interposto cu. É um cu labiríntico, aquele que nos é apresentado neste jogo de espelhos de cus.
Os cus distinguem-se ainda quanto ao seu estatuto. O cu a que Viegas se refere é um cu público; Botto debruça-se sobre um cu privado. Enquanto Botto deseja subordinar o cu ao seu prazer pessoal, Viegas pretende colocar o cu do fiscal das facturas ao serviço da comunidade, estabelecendo-o como sede apropriada para um castigo aplicado por um país inteiro. Esta distinção é, juntamente com o que ficou dito atrás, essencial. No entanto, passou ao lado de todos os nossos analistas políticos, que têm sido desde sempre incapazes de levar a cabo uma competente hermenêutica do cu. Lamento dizê-lo, mas a generalidade das observações que li acerca deste assunto não valia um cu.

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