domingo, 21 de outubro de 2012

A Griffe da Fruta (Ricardo Araújo Pereira)


A crise europeia não conseguirá derrotar-nos enquanto formos capazes de não perder de vista o essencial. Não permitamos, amigo leitor, que o aumento dos impostos, o desemprego e o corte dos subsídios nos impeçam de observar os grandes fenómenos sociais e culturais como este: a fruta, agora, traz etiquetas. Eu ainda sou do tempo em que havia apenas dois cuidados a ter com a fruta: lavar ou descascar. Desrotular é uma preocupação contemporânea. "Lavaste essa maçã, Carlinhos?", perguntavam as mães do século XX. "Lavaste e desetiquetaste essa maçã, Carlinhos?", perguntam as mães do século XXI. É mais uma preocupação extra, que as mães de antigamente não tinham. Por outro lado, o fenómeno alargou o mercado de trabalho, gerando as profissões de designer de etiquetas de fruta, fabricante de etiquetas de fruta e etiquetador de fruta. 
Um analista incompetente terminaria aqui o seu exame ao fenómeno das etiquetas da fruta. Não é o nosso caso. Há que ir mais além e perceber todas as implicações sociológicas da etiquetagem hortofrutícola. Em primeiro lugar, a colocação de rótulos na fruta criou um facto social que estava por identificar até agora: o snobismo da fruta. Criança que, no recreio da escola, merende uma maçã desprovida de rótulo, passa a ser ostracizada pelos colegas que só consomem fruta de marca. Mesmo no âmbito das frutas de marca, haverá uma hierarquia que distingue as frutas de marcas mais prestigiadas, consumidas pelas crianças mais populares, das frutas de marcas menos boas, consumidas pelas outras. 
Em segundo lugar, a rotulagem das frutas atrai um grupo social incómodo: os coleccionadores. Onde houver etiquetas, há coleccionismo. Se o leitor julga que estou a inventar, tem bom remédio: uma fácil e rápida pesquisa na internet revelar-lhe-á vários fóruns de coleccionadores de rótulos de fruta, com indicações úteis acerca do melhor modo de recolher, catalogar e trocar etiquetas, incluindo dicas práticas sobre o furto de etiquetas na zona dos frescos dos supermercados. Há numismatas sem dinheiro para investir em moedas que aplicam os seus conhecimentos em colecções de rótulos de fruta e filatelistas falidos que trocam os selos pelas etiquetas em álbuns que podem ser menos valiosos mas são tratados com o mesmo esmero choninhas.
Em 2011, o sistema financeiro está à beira do colapso e a realidade que conhecemos pode mudar drasticamente. Mas há quem ponha etiquetas na fruta, e quem recolha as etiquetas para as coleccionar. Só não se percebe se isso é um indício de que temos salvação ou mais um sinal de que o mundo está mesmo para acabar.


Sem comentários: